VERONA - DIA I - Parte 3
- Bruna Gonzaga
- 1 de mai.
- 5 min de leitura

A felicidade é sempre igual, mas a tristeza é singular. Todas as pessoas tristes são tristes
de um jeito muito particular. Helena sentia muita falta de Dante mas sua tristeza morava na falta de algo que era muito bom e tranquilo. Dante era um filho carinhoso e exemplar, estava sempre por perto, acompanhava Helena o tempo todo e foi o ombro amigo perfeito à época do divórcio, quando ainda era apenas uma criança. Hoje ele dava para a mãe toda a atenção que conseguia, o que não era muito, considerando que ele era um cara jovem e bonito estudando na Europa.
A situação de Otávio era totalmente diferente. Ele sentia que tinha perdido a vida de seus filhos enquanto tentava construir essa vida para eles. Eles estudaram em boas escolas, viveram em boas casas e tiveram acesso a tudo, mas ele não estava presente para testemunhar essas coisas, porque estava sempre trabalhando, sua esposa cuidava da casa, das crianças e das relações familiares que ele não tinha tempo para estreitar. Quando sua aposentadoria finalmente chegou, sua esposa adoeceu e ele e os filhos eram praticamente três estranhos tentando conviver com o luto dentro de uma casa luxuosa mas extremamente silenciosa e triste.
Quando um encontro assim acontece, um desses, em que as pessoas não se conhecem, mas se reconhecem, cada um deles vê sua tristeza refletida em um espelho. Não é possível passar incólume a isso, não se pode passar imune ao seu reflexo tão exposto. Talvez não apenas por isso, mas também por isso, Helena e Otávio se perderam na conversa, enquanto se encontravam.
- A MESA TRÊS ESTÁ PARADA!! MAYA!!! – Sarah precisou gritar, porque ela não estava em lugar nenhum.
Rafa atendeu a mesa, antes que o homem tivesse uma gangrena por estar a tanto tempo com o braço levantado. Ele e Maya eram amigos e cobriam um ao outro, tudo para evitar outra bronca da Sarah, mas hoje especificamente ele achou que Maya estava sumindo um pouco demais... a última vez que ela sumiu tanto assim ele a encontrou chorando no banheiro porque um integrante de alguma banda de k-pop tinha saído da banda de um jeito IMPERDOÁVEL (segundo ela).
Maya veio dos fundos gritando “desculpa, desculpa, desculpa, desculpa, voltei” e foi interceptada por Sarah.
- Pro seu bem eu espero que você esteja com uma puta dor de barriga, senão nada justifica esses sumiços.
- São os gatinhos, Sarah... eles são tão pequenos e indefesos e a Dora está rejeitando os dois. – Maya choramingou e fez aqueles olhinhos tristes. – Eu não posso ficar com eles em casa, minha mãe vai me matar. O que a gente faz?
- Atende as mesas, estamos quase fechando. Te prometo que a gente vai dar um jeito.
- Tá bem. – Maya saiu dando pulinhos e Sarah só sorriu para Ian e balançou a cabeça. – Você viu a Helena?
Ele apontou com a cabeça na direção da mesa no canto da área externa no bar, Helena e o homem misterioso riam e conversavam, ela fumava um cigarro e ele gesticulava com um bolinho de mandioca em uma das mãos, enquanto levava o copo à boca de vez em quando.
- O papo tá animado ali... – Sarah comentou com Ian enquanto escorava no balcão, querendo um pouco de descanso pela primeira vez naquela noite.
- Ela estava precisando.
- Pelo visto ele também.
As pessoas bebiam, comiam, se divertiam... em uma mesa uma conversa animada sobre cinema, em outra o debate político entre amigos acabava em risos, coisa que só acontece verdadeiramente entre amigos. Casais começando se olhavam com olhar encantado e mantinham regras e personagens que só se mantem quando ainda há entre as pessoas a magia dos primeiros encontros.
A playlist de música brasileira embalava a noite e a conversa entre Otávio e Helena. As semelhanças entre eles iam além da solidão que tomava seus pensamentos. Ambos eram grandes apreciadores de arte, música brasileira, tinham se formado na mesma universidade em épocas próximas, parecia que eles tinham tudo para ter se encontrado antes, mas isso não tinha acontecido.
- Louvre em 1992!
- Não acredito! Também foi minha primeira vez lá! Eu era uma jovem descobrindo o mundo e vendo ao vivo tudo que tinha estudado na faculdade.
- Helena, quantas vezes nos desencontramos?
- Vinícius de Morais tem uma frase que diz que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
- Acho que é a moral da coisa toda, não? Não importa quantas vezes nos desencontramos. Basta um encontro pra colocar tudo no lugar.
Helena sustentou o olhar de Otávio por um tempo longo. Ele tinha sido feliz com a esposa, ela tinha tido uma vida feliz, mas agora, hoje, o peso dos anos todos lhe doíam os ombros. O vazio da casa quando ela chegasse, depois de fechar o bar e deixar os meninos em casa. Depois que todo o alvoroço passasse, os clientes fossem embora, ela ainda estaria sozinha e isso era cansativo e em algumas noites, também era triste.
- Acho que somos os últimos. – Helena falou.
Ela observou enquanto Sarah fazia as últimas contas no caixa. Jorge já estava sentado à mesa sem sua dólmã, Rafa e Maya juntavam as últimas mesas enquanto Ian guardava os utensílios limpos na prateleira atrás do balcão.
- Corrigindo, eu sou o último. O bar é seu.
- Ah é! – Helena gargalhou alto, mas a risada foi interrompida quando Rafa chegou com a conta.
- Helena? – Ele questionou sem saber exatamente de quem cobrar.
- Eu pago. E nem pense em não deixar, sou um homem antigo.
Otávio e Helena se levantaram e foram atravessando a parte aberta do bar. Como se tentando estender aquele momento, os dois caminhavam vagarosamente. Quando aquela noite terminasse, seria como estourar uma bolha que havia se construído entre eles e provavelmente, não haveria volta.
- Maya eu juro por Deus para de chorar! – Sarah estava falando de forma autoritária, porque Maya parecia uma criança inconsolável.
Dora tinha começado a dar sinais claros que não queria mais saber de ser mãe e tinha batido em um dos gatinhos, que tinha agora um pequeno arranhão no topo da cabeça.
- Sarah a gente não pode mais deixar eles aqui! Leva eles pra casa, por favor!!
- Nós não vamos levar, a Dora não vai fazer nada. – Sarah não podia garantir, Dora já não estava mais demonstrando sequer UM sinal de paciência.
- Posso saber porque estamos brigando hoje? – Helena se aproximou da comoção.
Rafa e Ian estavam sentados no degrau da porta do bar, apenas esperando para entrar no carro em que Helena os levaria embora, como todos os dias.
- Helena! A Sarah quer deixar os gatinhos aqui, mas a Dora já não quer mais. Ela vai machucar os bebês, Helena.
- Que bebês?
- Os gatinhos da Dora.
- Posso perguntar quem é Dora? – Otávio estava ao lado e perguntou de forma educada, entrando no assunto.
- Nossa gatinha. – Maya deu praticamente um sussurro entre soluços. – Eles não podem ficar aqui. Eles já tem até nome. Hércules e Niobe! Eu não quero que o Hércules e a Niobe morram.
Otávio apenas assentiu e sorriu levemente.
Às vezes a noite termina como começa. Em algumas noites, corações tristes continuam tristes, não importa o que aconteça. Alguns dias, estar com alguém que te compreenda alivia momentaneamente suas dores, cala as vozes que te dizem que nada vai ficar bem de novo, que a vida nunca vai voltar ao que era.
Em alguns momentos, nossos próprios fantasmas viram lágrimas que embaçam a visão e nos impedem de ver a vida com clareza. Mas existem algumas noites e esse é um dos tipos que nos lembramos no final das contas, em que nossa solidão encontra uma outra solidão e juntas elas se tornam companhia. Existem momentos em que nossa tristeza descansa em um colo também cansado e um abandono vai ficar mais suportável, mais fácil de aguentar.
A tristeza de Helena encontrou alento nas dores de Otávio e ele sentiu o mesmo. Às vezes, mesmo após tanto desencontro, mais de um encontro pode acontecer e salvar alguém.
Obrigado pela companhia, foi excelente estar com você. Espero poder repetir em breve. Com carinho, do novo amigo, Otávio.
A mensagem de Otávio chegou ao celular de Helena algum tempo depois de ela chegar em casa.
Eu agradeço igualmente. Espero que você volte, pelo Verona e por mim.
Beijo. Helena.
Helena sorriu olhando para o celular e completou:
Ah, e obrigada também pela ideia, eu não teria pensado em ficar com ela se você não estivesse lá. Segue uma foto da Niobe já acomodada na nova casa.
Anexada àquela mensagem, uma foto um pouco escura da minúscula gatinha Niobe deitada sobre o travesseiro macio de Helena. Ela dormia o sono cansado de quem tinha batalhado pela vida naquele dia.
Otávio recebeu a mensagem e seus olhos tristes e azuis se tornaram um pouco menos tristes, ele colocou o celular sobre a mesa e observou, com o coração completo, depois de muito tempo, enquanto Hércules (cujo nome era um pouco pomposo demais para seu tamanho) bebia leite em uma tigela no chão.


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